Destruição e esperança

Tanto a liberdade como a igualdade estão entre os principais objectivos perseguidos pelos seres humanos ao longo de muitos séculos; mas a liberdade total para os lobos é a morte para os cordeiros, a liberdade total dos poderosos, dos dotados, não é compatível com os direitos a uma existência decente dos fracos e dos menos dotados.

Isaiah Berlin, in “The crooked timber of humanity: chapters in the history of ideas”, 1991.

Há bastante tempo que este blogue vive um período de pousio. Tenho andado entretido com outras obrigações que envolvem mais demandas estratégicas do que aventuras deleitosas. Ando a capitalizar linhas no meu tecido curricular enquanto tento finalizar a minha tese de doutoramento. Há dias que me apetece largar tudo e gritar aos mandatários deste mundo coisas feias em todas a línguas que conheço. Gostava de ter mais tempo para mergulhar num bom romance e escrever para nada. Sempre gostei de confabular. Escrever apontamentos faz de mim uma pessoa mais feliz do que os artigos científicos que publico.  

Estamos sempre numa situação de inferioridade perante a vida. Quem é que nos quer ouvir, quem é que nos quer ler e, sobretudo, a quem damos o privilégio de ser ouvido? Escrever para o mundo que não nos quer escutar é sempre uma actividade que gera muita frustração e gera poucos frutos. Já nem os intelectuais e os jornalistas são capazes de distribuir esperança. A crítica que os intelectuais dão de mais, e quase sempre de um jeito inteligível para os leigos, os jornalistas dão de menos.

Paul Klee, Destruição e Esperança (Zerstörung und Hoffnung), 1916

O que mais me entristece é saber como deixamos de nos arrepender das coisas que fazemos e dizemos. Este mundo, que é impiedoso para com os fracos e inexplicável para os poderosos, não lamenta os seus erros passados e presentes. O sujeito ético resigna-se a ser um sujeito indiferente. Este último já não sabe dialogar. São raras as pessoas que estão eticamente comprometidas com o bem-comum, principalmente quando as prioridades são obter dividendos. As universidades tornaram-se lugares perversos. São poucos os intelectuais que ainda têm força para dizer o que é genuinamente importante, essencial e urgente.

Interrogo-me se somos capazes de dizer algo concreto sobre o exercício da democracia que não seja apenas votar a cada quatro anos. Quem nos protege das anomias da informação e da ignorância que grassa por todos os cantos do globo? A humanidade está descontrolada em fanatismos. Será devido à pobreza da linguagem? Esta era a hipótese de George Orwell. Seja como for, estamos numa situação de perigo. Continuamos a olhar à nossa volta e não vemos muita coisa a que nos podemos agarrar com afinco comunitário. Estamos sempre a pairar ou a saltirar. Não serão os papers académicos, essa produção e divulgação avulsa de conhecimento sem critério ético, que nos irão dar respostas concretas. Não se consegue mudar o mundo só com especialistas.

Todo este preâmbulo serviu para quê? Talvez para dizer que ainda é possível encontrar nas margens dos média, nos recantos da globalização capitalista, alguém que se preocupa com a cultura e as artes e investe de si para lançar os seus engodos acústicos, e contribuir para uma luta mais justa e uma discussão mais informada.

Partilho um episódio dedicado a John Berger, e ao seu último livro, Confabulações, mas podem ser escutados muitos outros, no programa, A Ronda da Noite, de Luís Caetano, na Antena 2.

A Ronda da Noite, de 10.Set.2018, Antena 2, RTP PLay
John Berger, a partir do livro Confabulações, editado pela Relógio d’Água.

Autismo de expressão

Paul Klee, The Path into the Blue, 1934

Nestas últimas semanas, tenho enfrentado pensamentos endiabrados que me assaltam dia e noite. Disputam qualquer coisa que não sou capaz de designar. Perturbam o foco e atrasam a lavoura de quem tenta imperativamente concluir algo. Estou convencido de que aquilo que está mais perto de nós é o mais difícil de classificar. Felizes aqueles que têm força suficiente para avançar sempre adiante, mesmo quando a nossa cabeça não consegue encontrar um núcleo de bom senso para uma resposta hiperbólica. Mesmo quando nos esforçamos para avançar, mas o denânimo se curva sobre nós e nos enfraquece a mão que escreve e a boca que fala. Não falo aqui de actos de coragem perante uma adversidade, mas na capacidade de resistir às tentações emocionais que nos assombram tão intimamente que nos bloqueam a acção.

Diz Albert Camus que, “as dúvidas é o que temos de mais íntimo”, e eu acredito. Às vezes, é difícil sair de mim e fazer o que tenho de fazer. Mas não é a solidão que me assusta, são as minhas fraquezas. O meu verdadeiro inimigo é esse. Um autismo de expressão perante um acto que se torna hostil. É-me sempre muito difícil chegar às coisas, e só com algum gesto de pragmatismo, mostro aos outros também que existo e que não me faltam as forças. Só na escrita me consigo entender. Só com a escrita sinto-me apto a conversar com os outros. Só na escrita consigo retrair as emoções e discorrer com razão crítica. Se tudo isto é verdade, nas últimas semanas tenho vivido numa falácia. Não sei ao certo o que está a perturbar-me a acção, será cansaço? Qual é o porquê de não sentir-me seguro no que faço? Que espécie virtuosa abandonou a minha lida?

Talvez uma ruptura profilática com o trabalho e compassada ao ritmo de “Blu”, de Ryuichi Sakamoto, seja a ponte necessária para um encontro mais profícuo no regresso.

Ryuichi Sakamoto – Blu (Tokyo Philharmonic Orchestra)